25 fevereiro 2007

Uma ficção indecorosa

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É sabido que a presunção discursiva contribui para um determinado bem-estar psíquico, não só pelo agrado do convencimento e estima que ela confere, mas ainda pelo mais que provável tom de convicção que dela emana para os que prestam atenção e do prazer pelo reflexo que deles se desprende sempre que se atinge o efeito de persuasão desejado.
Claro que desde a simples suposição mais ou menos assertiva até à incómoda atitude de total pedantismo vão inúmeros graus de presunção sendo que os mais comuns são inofensivos, fúteis, quotidianos e claro “não tributáveis”…
Todavia há que ter bem ciente que a esmagadora maioria das asserções presunçosas fazem parte de uma certa mentalidade e mais classificam quem as diz do que convencem, numa segunda reflexão, os respectivos auditórios. Isto porque pertencem inequivocamente ao domínio da ficção e não da realidade objectiva. Assim, a presunção ou se insere no campo da opinião sendo portanto subjectiva ou da conjectura pura e simples, não explorando já a pertinência moral da jactância que frequentemente lhe está associada. Em qualquer dos casos a presunção é pertença do imaginário.
Nos tempos que correm a opinião e os fazedores de opinião invadem os “meios de comunicação”. Acontece que aí as abundantes presunções são maioritariamente ideológicas e o mais das vezes meramente sectárias. Isto não é bom nem é mau, é próprio da nossa época. A questão a ter bem presente é o carácter ficcional que acaba fatalmente por se instalar, e que nos obriga a uma cada vez maior atenção e frieza nos juízos que fazemos. Não diria uma desconfiança sistemática mas um estado de alerta constante torna-se imprescindível.
Nos protagonistas do Poder, também eles parte da fantasia mediática, infelizmente o descalabro (porque mais primário, menos profissionalizado) ainda é maior, descambando quantas vezes para a mais pueril demagogia!
Por exemplo, quando alguém diz «Antes de decidir, ponderarei com muito bom senso (…)» tenhamos bem presente que a afirmação se insere no âmbito da completa ficção. Pois, de facto (objectivamente, na realidade), como é que alguém pode afirmar de si próprio que usa de “muito bom senso” na análise do que quer que seja? Mesmo que tenhamos que reflectir com toda a sensatez de que formos capazes, não serão os outros a ajuizar? A isto chama-se presunção. Inocente, talvez, mas presunção. Não, não é apenas uma questão de linguagem. Por mais insignificante que possa parecer é uma representação de mais um rastilho para a contaminação geral e consumação de uma comunidade verdadeiramente fictícia.


Cátia Farias

3 comments:

Blogger Caiê said...

presunção e água benta...

28/2/07 8:05 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Gostei do racionalismo da análise e cheguei também à conclusão, em função deste post, que o discurso, especialmente o político, não é dirigido para fora, mas sim para dentro, para o que discursa, que pretende ver reflectido no seu discurso os seus interesses particulares e, assim, concretizados os seus desejos na esfera do público. O poder discursa, assim, em função dos seus próprios interesses, mais do que no interesse do público, do cidadão.
E este mal alastra, alastra...
Saudações amigas

1/3/07 7:25 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Desses fazedores de opinião creio que o que mais irritante é a presunção de que os outros devem ouvir o que eles têm para dizer, mesmo quando nada há para dizer por escassez de massa noticiosa ou inconclusão dos assuntos.

[www.3vial.blogspot.com]

3/3/07 12:07 da manhã  

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