07 fevereiro 2007

"Calçadeiras à solta"



Que haja quem tome defeitos por qualidades e faça disso matéria publicitária, no estilo «invista em Portugal, que os salários dos trabalhadores são baixos»; enfim…
Que quem diga isso seja o ministro da Economia de Portugal em visita à China por estes dias onde, se os chineses não interpretarem as suas asserções sobre custos de mão-de-obra como intencionalmente sarcásticas, no mínimo hão-de pensar que os tomam, a eles chineses, por ignorantes, que é aquilo que eles não são, pois há muito que fazem análises económicas sobre todo o Mundo, incluindo a Europa evidentemente e, claro está, Portugal que já conhecem de longa data; enfim…
Que isso aconteça e possa parecer uma enormidade tal para os portugueses que, por isso mesmo, passem as peripécias acessórias da viagem à frente dos pormenores mais essenciais; enfim…
Que a inteligência dos portugueses não consiga sossegar com o que parece ser uma provocação à sua condição real, totalmente distinta da que resultaria das ideias de avanço tecnológico prometidas pelo primeiro-ministro Sócrates, o qual veio expressamente a público fazer a defesa esfarrapada dos argumentos do seu ministro da economia Manuel Pinho; enfim…
Que o ministro das Finanças em tirada muito pouco inspirada, diga que Portugal estará em posição privilegiada para ajudar os chineses a negociar em África, quando no virar do século toda a gente se deu conta da “ocupação” desenfreada que a China desencadeou em África e em Angola de forma avassaladora (por razões evidentes) sem nunca nos vir perguntar sequer como se diz “estratégia” em português, e de tal forma que os Estados Unidos já estão deveras preocupados com tudo isso; enfim…

Bem, que tudo isso aconteça é com certeza muito desolador, mas contudo não é grave. Talvez anedótico, mas muito grave não, convenhamos. Tudo isso apenas tem o inconveniente de degradar a discussão política e de nos confrontar com os deslizes devidos à mudança de fusos horários e de alguma inépcia dos nossos governantes. Ridicularias, em todos os sentidos, nada mais!
O que é realmente grave é outra coisa! O que é grave, o que não se pode perdoar de todo, é que o partido do Governo disponha no órgão soberano dos media – a televisão – de formas mais ou menos encapotadas (e talvez até ilegais) de moldar a opinião da população para a sua conveniência. Como já devem ter adivinhado falo da tribuna do socialista António Vitorino na RTP1, televisão pública. Como se trata de “diz que é uma espécie de entrevista”, sem qualquer contraditório, vimos nesta última sessão serem arredondadas todas as arestas que pudessem ferir quaisquer susceptibilidades relativas à viagem do Governo à China transformando o anedótico mau desempenho numa participação próxima do exemplar. Qualquer intenção de esclarecer verdadeiramente o público ficou absolutamente submersa pela preocupação em fazer propaganda política de forma descarada, demagógica e pouco dignificante para tão brilhante orador e até mesmo para a tão prestigiada Judite de Sousa (que neste formato mais parece uma colegial, intelectualmente falando, claro...).
Sim, isso sim, isso é que é grave: a função da comunicação pública, os valores, os princípios, a liberdade de pensamento, tudo está em causa.
Não se trata em exclusivo da pessoa de António Vitorino, que com certeza faz o melhor que pode e o melhor que sabe, trata-se do sistema que permite que esse tipo de programas continuem a poder acontecer. Programas onde, de forma unilateral e continuada, determinadas eminências, todavia intelectualmente comprometidas, possam exprimir aquilo que muito bem lhes convém sem nenhuma forma de contraposição, apenas perante um “pseudo entrevistador” politicamente correctíssimo. Os intelectuais que se prestam a esse papel de “pregadores” fazem, esses sim, o papel de calçadeiras: são as calçadeiras* ao serviço de certas opiniões e ideologias para que estas entrem bem no imaginário de um povo. Embora se diga, em abono da verdade, que este povo já vai estando farto de imaginar!

*calçadeira: instrumento para ajudar a calçar botas ou sapatos ou para outros fins sociopolíticos e económicos. (palavra usada por Teixeira dos Santos, ministro das Finanças, para definir o papel de Portugal como facilitador das relações entre a China e a África...)

Filipe Taveira

5 comments:

Blogger Nuno Guronsan said...

Sem discordar do que aqui expões, mas apenas gostava de lembrar que é também na RTP que ainda se passeia essa personagem dúbia que dá pelo nome de Marcelo Rebelo de Sousa. Podiam pegar nos dois e deixá-los a boiar no Tejo...

7/2/07 7:08 da tarde  
Blogger Caiê said...

Portugal como calçadeira = Portugal a cheirar mal e Portugal a fazer o que sabe melhor que é o "desenrasca"! Na verdade, a coisa acaba por não estar mal vista...

9/2/07 5:42 da tarde  
Blogger Diogo said...

As opiniões de Vitorino ou as opiniões de Marcelo são tudo menos independentes. Infelizmente não existem suficientes Gatos Fedorentos para o contraditório.

11/2/07 11:21 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Concordo plenamente com o que diz e, embora com a devida diferença entre televisão pública e privada,faço notar que os "fazedores de opiniões" da sic são tambem muito preocupantes se atentarmos á forma subliminar que usam para o fazer.
Chocou-me quando no sáb.,vésperas de referendo,e sendo bem sabido que são as 24h. de reflexão antes de uma qualquer votação de silencio por obrigação e bom senso,chocou-me ,dizia eu,que nos telejornais se tenha transmitido toda uma panóplia de noticias que envolviam bébés.Desde o ensino da leitura a bébés,passando pelo parto da senhora X que correu tão bem ,as noticias choviam em catadupa fazendo-nos apreciar quão bela é a vida e a solidariedade e etc e tal.
E consequentemente pensar ,ou duvidar ou no minimo,e finalmente, decidir em que é que se vai votar no dia seguinte.
Que subliminar!
E tudo isto seguido por uma telenovela habilmente escolhida há meses(!)não sem algum burburim pois parece que era suposto ser outra.
Coincidencias?
Se lermos nas entrelinhas não me parece.
Pergunto:
Não terá o Big Brother já fraccionado uma parte do nosso raciocinio livre fazendo-nos crer que são apenas associações de ideias paranoicas,no lugar de nos permitir estar atentos e alerta mantendo um pensamento critico ,senão isento,pelo menos nosso?
Que Comunicação,que Poder é este que nos governa sem mandato?

13/2/07 3:07 da manhã  
Blogger antimater said...

Ibis,
Assino em baixo.
Tudo!

13/2/07 3:30 da manhã  

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